Walkyria Marques de Paula

CHEGOU A HORA DA DONA CIDA



Em uma comunidade, logo ali na divisa de São Paulo com Guarulhos, conheci Dona Cida. Aparentava muito mais que seus menos de 60 anos, trazia no rosto sofrido, a história de uma nordestina que migrou para São Paulo ainda menina rompendo definitivamente com suas raízes, pois perdeu o contato com a família e como nunca “melhorou de vida” jamais teve coragem de voltar à sua cidade de origem.

Durante o tempo que estive na favela sempre encontrava a dona Cida nos becos correndo e  carregando papelão, latinhas,  sacolas, cesta básica ou o Tião, seu marido bêbado. Em todos os nossos encontros, trocávamos alguma novidade, um cumprimento caloroso ou pelo menos um olhar de cumplicidade, esse último só quando ela estava com o Tião. Quando tínhamos alguma reunião, ela era sempre a primeira a chegar, inclusive era motivo de piada dos outros amigos:

-Dona Cida já chegou?

E quando ela levantava os olhos diziam:

-Mentira!

Ou:

- Novidade!

Já quando o projeto estava terminando soube que Dona Cida adoeceu e que estava internada em estado grave, gravíssimo! “Cheia de aparelho, desenganada pelos médicos e que não passaria daquele dia”. É, parece exagero, mas é assim que se anuncia em uma favela, um problema de saúde grave, por vezes nem tão grave assim.

Mas, a vida de Dona Cida realmente estava por um fio, e um dia pela manhã recebi um telefonema que informava que ela tinha morrido e que o Tião, bêbado, perambulava pelas ruas da comunidade aos prantos.

Como era de praxe ela seria velada, a noite toda, na igreja verde, localizada na rua principal da favela. Fiquei chateada, pois sempre me entristece constatar que algumas pessoas vêm a esse mundo para sofrer na maior parte de sua vida.

Bem, dois dias depois fui a uma reunião com os moradores na igreja verde e encontro, ainda, um cenário de velório. Indaguei sobre o motivo de não terem levado as flores, as velas e então choveram versões sobre o ocorrido, que foi mais ou menos assim...

Lá pelas 2h00 da madrugada, 15 pessoas velavam a Dona Cida. Tião chegou acompanhado de outros três bêbados e resolveu que fecharia a igreja e deixaria o caixão lá dentro.

- Nãooo quero ninguém chorando em cima da minha veia! Bradava o ébrio com a voz pastosa.

Contragosto, todos saíram e o marido sensível, trancou a porta e foi embora acompanhado de um dos seus amigos bêbados e uma garrafa de cachaça com destino a seu barraco, que ficava na última viela da favela, cheia de becos estreitos em que mal cabia uma pessoa. Porém, ao se deitar na cama do casal, sentiu falta da sua velha esposa e resolveu que a traria para casa, afinal, não seria justo deixá-la naquela igreja fria e solitária.

Voltaram então para capela e levaram o caixão pelos becos. Como não conseguiam dobrar as esquinas com caixão deitado, colocavam-no em pé, e assim, com muita dificuldade chegaram ao destino. Cansados, deixaram o caixão na sala, tomaram um resto de jurupinga que encontraram na casa e juntos dormiram na cama do casal.

Pela manhã, os vizinhos foram se despedir de Dona Cida e encontraram a igreja fechada. Achando que a defunta permanecia na igreja, foram acordar o viúvo e pegar a chave. Como ninguém atendia na casa dele localizaram a chave extra e...Surpresa! A morta não estava lá. Criou-se então um frenesi na comunidade. Onde foi parar o corpo de Dona Cida?

Voltaram a bater na porta do barraco, mas ninguém atendia. Foi então que chegou a funerária para conduzir o féretro ao cemitério, mas cadê?

O enterro estava marcado para as 9 horas, num cemitério da região, mas neste horário, sequer notícias haviam recebido.

Chamaram a polícia que demorou a chegar e então, por volta de 11 horas, aparece o Tião, com a cara amassada, mal se lembrando do que acontecera. Ao avistá-lo um coro se formou:

- TIÃO CADÊ A DONA CIDA?

E envergonhado ele respondeu:

-Tá lá em casa, perdemo a hora... cêis sabi né? A vida toda a Véia que me acordou!

Então, foram todos ao barraco, um cheiro de café fresco no ar, Ari, o amigo bêbado, sem camisa, com um copo na mão e ao chão, o caixão aberto e Dona Cida totalmente revirada,  que atrasada para seu enterro.. .não descansava em paz!


ATUM É PEIXE?


Em 2010 trabalhei em uma favela na região nordeste da capital. Embora a situação lá fosse de muita pobreza, acredito que encontrei uma comunidade das mais divertidas com as quais já me envolvi. E neste contexto, conheci a Marcinha... Nordestina, galega, magra, uns 35 anos e uma verdadeira matraca:

- Falo mais que o ômi da cobra viu Walkira?

E não demorou pra que comprovasse isso, afinal ela era uma seguidora da equipe, nos conduzia pelas ruas da favela, falando, rindo muito e apresentando os moradores, sempre destacando as coisas engraçadas da vida dessas pessoas.

- Esse aqui é o Mané, veja o tamain du pé desse ômi? Também pudera veio a pé da Paraíba aqui, levô pra mais de 3 mêis.

- Essa aqui é Virgina, dançava um forró que só a peste, mas agora se converteu. Passa o dia cantando os louvô, mas quando um vizin bota “Calcinha Preta” ela se esqueci e dana a rebolar-se!

Várias vezes visitei seu barraco, uma moradia carinhosamente arrumada, onde viviam ela, 4 filhos e 1 neto. Apesar do zelo, eram banhados constantemente pelas enchentes e dividiam espaço com ratos e insetos.

- Num vejo a hora de pegá meu prédin... isso aqui num é vida!

E mesmo com as dificuldades ela falava e sorria, subia e descia sempre nos acompanhando.

Por um período fiquei envolvida em planejamento e não fui à favela, mas sempre recebia notícias sobre ela pelos colegas de trabalho.

Um dia quando retornei, a encontrei esfuziante e, ao me ver, começou a falar sem pausa:

-Walkira minha fia montei uma pizzaria e vou fazê uma pizza pra tu. Qual sabor tu mais gosta? Muçarela, presunto, calabresa, atum? Com ovo, sem ovo, com cibola, sem cibola, com tumate, sem tumate?

Antes mesmo de responder ela retomou:

- Num vai fazê como o Dedé da padaria! Sabe quem é? O Dedé é o padeiro e sempre dá desconto no pão pra mim... as vez faz até um fiado! Menina do Céu, fiz a primeira pizza e já levei pra ele. Caprichei numa com sabor de atum e muçarela. Já entrei na padaria gritando:

Dedé! Dedé! A primeira pizza é tua! E entreguei pra ele. Quase cai dura quando ele me disse que num gostava de peixe!

E o que tem a ver isso? É pizza meu fio!

-Então, disse ele, num como peixe, e essa pizza é de atum.

- E desde quando atum é peixe? rebati

- Oxente atum é peixe Marcia, tu num sabe disso?

- Fiquei doida, catei a pizza e corri pra casa! Abri o armário procurando uma lata de atum e num é que tava lá? O desenho do peixe bem na lata! Eu nunca que sabia que atum era peixe!

Rindo muito perguntei:

-Você não sabia que atum era peixe? Você achava que era o que?

-Ah! Como era na lata, achei quer era feito azeitona, ervilha, milho! É muita inguinorança num é?

Eu refleti e disse:

Não, num é ignorância!É muito é divertido isso sim, vou contar isso pra muita gente! Bora comer a pizza de muçarela... muçarela vc sabe o que é?

-Eita é quejo!!

E vem de onde:

-Tá me tirano? É do leite da vaca!!!


E sorrindo partimos para degustar a pizza ...










Formada em Serviço Social, gerente de ações de recuperação urbana da CDHU, atua em projetos com comunidade de favela desde 1990. Escreve crônicas, cordel e apresenta stand up, sempre abordando vivências nas comunidades por onde passou.

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